Clube de Leitura A Pediatra

Clube de Leitura do CFCL-SINESP reuniu, virtualmente, cerca de 30 pessoas no dia 27 de maio para debater a obra mais recente da escritora paulistana Andréa del Fuego. No livro intitulado A Pediatra, lançado em 2021, Andréa deu vida à controversa Cecília, uma pediatra com características inesperadas em uma médica atuante no mundo infantojuvenil.  

Trabalhar com crianças exige apreço e carinho por esse público, certo? Não se você é Cecília Tomé Vilela, personagem narradora do breve romance de del Fuego – ou seria uma novela? A começar pela provocadora capa do livro, destacada pela filiada Maria Cinto, onde se vê uma mulher jovem fumando um cigarro e trajando um característico uniforme branco, o que se apresenta desde as primeiras frases do texto é uma desconstrução da imagem edificante que as pessoas comumente têm dos “doutores”.

Os participantes dessa edição do Clube de Leitura conversaram, criticamente, sobre a linguagem, a forma, os temas e as personagens da obra. Na fala de abertura, o professor Marcos Mauricio apresentou uma breve biografia da autora e destacou o estilo discursivo do texto (reminiscente de outros autores lidos no Clube, como José Saramago e Valter Hugo Mãe, no que diz respeito à supressão de pontuação para a indicação dos discursos diretos). Em seguida, ele ressaltou o fato de a narração em primeira pessoa, quase construída como um fluxo de consciência, colocar os leitores em posição privilegiada para transitar pelos pensamentos mais privados da personagem Cecília, desnudando, assim, seu caráter, suas fragilidades e suas contradições.

Caráter da personagem principal monopoliza atenções no debate

 A filiada Maria de Lourdes viu na personagem Cecília traços de psicopatia e sociopatia, bem como de egoísmo, narcisismo e ausência de sentimento de culpa ou remorso – características típicas dessas duas condições.

Rosangela, participando pela primeira vez do Clube de Leitura, também ressaltou o caráter associal de Cecília e sua falta de amigos ou de relações significativas – com exceção de seu aparente apreço pela figura paterna.

 Marta Held e a Dirigente Sindical Alcina Carvalho viram em Cecília uma postura classista, potencialmente racista e homofóbica, mas, por outro lado, também identificaram nela o perfil de uma mulher carente, sozinha e afetivamente debilitada.

Ainda na linha de refletir sobre o caráter de Cecília, Graça chamou a atenção para os pensamentos da personagem, talvez não muito distante dos pensamentos de muitos de nós: “a nossa censura consciente ou inconsciente nos impede de pensar isso”. Cecília cutuca feridas que pareciam fechadas, ou que nem sabíamos que existiam.

A Dirigente Sindical Maura Maria, por sua vez, manifestou incômodo diante da postura fria e desumanizada da personagem, especificamente em seu trato com as crianças que frequentavam o consultório – o que a fez se lembrar de encontros com pediatras reais não muito diferentes dessa pediatra ficcional.

Filiadas debatem abuso em práticas médicas

Outro ponto importante que surgiu foi a questão de o texto tocar em temas controversos, às vezes parecendo denunciar certas práticas e posturas. Nesse sentido, Ângela Figueredo observou as referências feitas ao recurso da medicação infantil em escolas de elite, e a Dirigente Sindical Alcina chamou a atenção para a vulnerabilidade das pessoas, especialmente das mulheres, quando têm que se sujeitar ao escrutínio íntimo de profissionais da saúde com personalidades não muito diferentes daquela apresentada pela personagem Cecília.

Críticas à falta de normatização do trabalho de doulas e outros profissionais envolvidos na prática dos chamados “partos humanizados” também foram identificadas no texto, como bem observaram Maria Cinto e Maria Aparecida.

Em outra chave, a filiada Ângela questionou se a visão negativa formada a partir do contato com os pensamentos de Cecília teria a mesma intensidade se ela fosse um homem. Ela também chamou atenção para o fato de que pouco se falou de Robson, um dos personagens do texto. Ele era amante da própria cunhada, que era também sua prima, e a engravidou.      

A filiada Rita Maria preparou um texto para compartilhar com o grupo e proporcionou uma breve, mas muito rica, abordagem da narrativa. Partindo de uma metáfora do filósofo francês Gaston Bachelard – a do conhecimento como apropriação do mundo por meio de mordidas – ela chamou a atenção para o faminto encontro de Cecília com uma nova realidade a partir de seu contato com o pequeno Bruninho, filho de seu amante, Celso, de quem havia participado do parto como neonatologista.

Infância problemática de personagem acende debate sobre formação de caráter

A relação de Cecília com Bruninho também proporcionou algumas reflexões a respeito de um outro lado da sua persona, principalmente a partir do reconhecimento de sua infância problemática, marcada pela falta de atenção e demonstrações mais intensas de cuidado. Diversos presentes se lembraram de momentos do texto em que a narradora revisitava sua infância e, desse modo, fornecia elementos para a compreensão da problemática adulta que havia se tornado. Conforme brincou o professor Jean Siqueira no chat da plataforma utilizada para os encontros: “All we need is love” – certamente um fã do famoso quarteto de Liverpool, os Beatles.

Ao final, o professor Jean insistiu na importância do passado de Cecília, de sua infância, para a compreensão de sua personalidade e de seu repentino interesse por Bruninho – uma “ruptura” na personalidade de Cecília, como o professor Marcos havia mencionado em sua fala de abertura. Segundo Jean, Bruninho havia se tornado um substituto afetivo de sua figura paterna, transferência possibilitada por meio de uma memória olfativa muito cara a Cecília.

Em muitos momentos, as falas de Andréa del Fuego em entrevistas e em outros textos foram citadas para que os participantes do Clube de Leitura pudessem refletir sobre a criação literária, sobre o processo criativo e sobre a impossibilidade de o autor ser o único dono das interpretações do texto. As interpretações se constroem no processo de leitura, um processo complexo de criação e criatividade, também por parte dos leitores.

“Eu não tinha gostado do livro, mas sabe que depois de participar aqui eu gostei dele?”, disse a filiada Maria Aparecida perto do horário do encerramento. E essa revelação tem tudo a ver com o propósito de um grupo de leitura, que proporciona a relativização das certezas, o deslocamento do olhar, o contrabando das ideias, o escambo de pensamentos e afetos e, por fim, a apropriação consentida. Ao final de encontros desse tipo, todo mundo sai com algo que não tinha ao ingressar.

Em junho tem mais Clube de Leitura. Fique alerta ao site do SINESP e participe!

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