Clube de Leitura

O Clube de Leitura do CFCL-SINESP debateu, no dia 24 de junho, o livro Dias de Abandono, da escritora Elena Ferrante. A obra expõe as dificuldades e crises de uma mulher, mãe de duas crianças, para ressignificar a vida após ser preterida pelo marido. O livro é psicologicamente denso e apresenta uma linguagem rica em imagens e metáforas, fato que garantiu excelentes discussões e polêmicas. Anteriormente, outra obra de Ferrante – A filha perdida – já havia sido trabalhada no grupo.

Quem é Elena Ferrante?

Elena Ferrante é uma figura misteriosa, como observou o professor Jean Siqueira. Extremamente reservada, ela jamais é vista publicamente, fato que alimenta muitas especulações. Dentre as histórias mais disseminadas está a de que ela, na verdade, seria um homem, um autor – algumas pessoas chegaram a afirmar que Elena Ferrante seria o escritor italiano Domenico Starnone (autor do texto Laços, já trabalhado no Clube de Leitura). Outra história especula que a autora, na verdade, seria a tradutora Anita Raja, esposa de Starnone.

Alheio à polêmica acerca da identidade de Elena Ferrante, o professor Marcos Maurício observou como esse ponto era irrelevante para a interpretação da obra, uma vez que o objetivo da leitura não deveria ser a tentativa de encontrar na biografia da autora a justificativa das escolhas narrativas e sim encontrar na própria estrutura do texto as chaves para sua compreensão.

Tomando o caminho da polêmica, a filiada Maria Cristina Garcia defendeu ser plausível ver em Dias de abandono um texto escrito por um homem, uma vez que, para ela, a narrativa apresentava a figura feminina de maneira caricaturalmente fragilizada – algo que uma escritora provavelmente não faria. Cristina ainda estabeleceu um paralelo entre o filme A flor do meu segredo, dirigido por Pedro Almodóvar, e o texto de Ferrante, apontando várias semelhanças entre as duas histórias a respeito da temática do abandono.  

Posicionamento feminista é identificado na obra de Elena Ferrante

A Dirigente Sindical Alcina Carvalho e a filiada Ângela Figueredo, por outro lado, viram na narrativa de Ferrante uma forte mensagem feminista que, em vez de desprezar a figura feminina, empreendia uma crítica, uma denúncia ao modo como as figuras da mãe e da esposa se apresentam no marco de uma sociedade patriarcal como a nossa. Assim como elas, o prof. Jean Siqueira também viu no livro de Ferrante um claro posicionamento feminista.

Alcina destacou que o texto mostra como a ideia de um certo padrão de mulher vai passando de geração para geração, perpetuando um modelo opressor que reduz sua autonomia e liberdade. “O que seria de Olga”, a personagem narradora da obra, “e de tantas outras mulheres se elas tivessem a oportunidade de escolha?”, questionou.

Ângela, por sua vez, ressaltou a importância de uma educação feminista para a formação de mulheres independentes, tanto emocionalmente como financeiramente. Comentando sobre os transtornos vividos por Olga diante da traição e abandono de Mário, seu marido, Ângela pontuou que “as mulheres precisam ser educadas para sobreviver a canalhas como Mário.” Para reforçar sua perspectiva, ela leu um fragmento do livro Para educar crianças feministas, da escritora nigeriana Chimamanda Adichie, onde a ideia do matrimônio como uma grande realização, como propósito norteador na vida de uma mulher, deveria ser relativizada e compreendida como apenas uma entre tantas outras escolhas para a vida.

Um aspecto do texto que chamou a atenção dos presentes foi a narração visceral em primeira pessoa, que Ferrante canalizou por meio de Olga. A filiada Maria Lúcia destacou que esse recurso lança o leitor no caos mental vivido por Olga, permitindo o compartilhamento de suas vivências, a ponto, inclusive, dessa identificação causar aflição com os acontecimentos que vão se sucedendo na história.

Lia Cunha também chamou a atenção para o fato de a escrita de Ferrante nos deixar sem ar e, em alguns momentos, tão desorientados quanto Olga. Em complemento a essa observação, a Dirigente Sindical Maura Maria opinou que “para ler um livro como esse é preciso estar bem...”.

Porta que se abre e se fecha para protagonista estimula interpretações metafóricas do livro

Outro ponto colocado em destaque foi o do simbolismo da porta do apartamento da família e das chaves para abri-la. Nos capítulos mais tensos do texto, Olga se vê mentalmente perturbada e presa com seus dois filhos, Ilaria e Gianni, e o cachorro Otto, sendo que o menino e o cão estavam adoecidos. Incapaz de se comunicar com o mundo exterior, sem linha telefônica e separada dele por uma porta (que a isola junto com seu pesadelo), Olga transita pelas fronteiras da sanidade e da iminência da tragédia. E ali, recorrentemente apresentando-se como esperança, está a porta.

Para Maria Cinto, mais importante do que a porta eram as chaves, que as mãos trêmulas de Olga mal conseguiam segurar: “A chave é a chave do enigma”, brincou com as palavras ao propor como tema central do texto de Ferrante a abertura da porta e não apenas a presença dela fechada. Segundo a filiada, essa abertura representaria a escolha de um futuro, um novo horizonte de possibilidades, algo que o casamento fracassado de Olga com Mario jamais permitiu. Além disso, mostrou como a capa do livro, na edição brasileira, é justamente uma porta aberta no final de uma escadaria.

Maria de Lurdes tomou a porta como uma metáfora do isolamento vivido por Olga, não só na situação concreta de seu abandono, mas como uma referência ao próprio processo formativo de sua vida. Nesse sentido, a abertura da porta, que encaminha a narrativa para o início da superação das crises e obsessões de Olga, estaria justamente apontando para o término desse isolamento e para a abertura de sua vida a novas relações.

Aspectos das relações entre as personagens também renderam considerações interessantes ao longo do evento. Marta Held, assim como Maria de Lurdes, destacou o isolamento social de Olga, mesmo antes de Mario abandoná-la, algo certamente decorrente de sua dedicação integral ao casamento e àquele modelo de vida imposto às mulheres. Apesar de suas relações afetivas se reduzirem basicamente aos filhos e ao marido, observou Marta, Olga jamais conheceu de fato o pai de seus filhos, assim como construiu uma relação complexa e ambivalente com as duas crianças.

A filiada Anadege Maria Rosa, em sua primeira participação no Clube de Leitura, trouxe para a discussão outra relação complicada vivida por Olga: com o vizinho Carrano. Segundo Anadege, porém, este era o oposto de Mario, mostrando-se uma figura amável e comprometida, apesar de tímida e solitária. E o fato de Olga, ao final, encontrar um certo repouso em Carrano – mesmo depois de desprezá-lo e manifestar repulsa por ele em outros momentos – significaria uma valorização dessa qualidade social do comprometimento com o outro, algo nem sempre fácil de se encontrar nas relações humanas.

Outra relação constitutiva da personalidade de Olga foi trazida à tona por Maria Lucia, extraída do passado da personagem: a “pobre coitada”. Segundo Malu, a pobre coitada, uma mulher abandonada pelo marido que tirou a própria vida – e a respeito de quem a mãe de Olga sempre conversava com as amigas enquanto a protagonista do livro era apenas uma criança – virou uma espécie de espelho para onde Olga jamais deveria olhar. Uma imagem que, sob a égide dos valores de uma sociedade machista, inevitavelmente, a assombrava como um fantasma.

Dias de abandono ou de auto-abandono?

O título da obra foi um outro tema de discussão. Cristina tomou o abandono referido no título como remetendo à atitude de Olga com relação à própria vida: uma mulher que deixou de lado seus desejos e seus sonhos para viver um papel social tradicional – uma vida que se construiu a partir do abandono de si mesma.

Lia Cunha viu, igualmente, Olga se abandonando, e analisou o processo desencadeado pela traição de Mario. Depois desse acontecimento, Olga se fecha, afunda-se em um abismo onde só existe o nada – tal seria o abandono que duraria dias.

Rosangela, por sua vez, questionou se realmente seriam dias de abandono ou se a expressão não deveria ser tomada em sentido mais amplo, remetendo a um tempo indeterminado. E, assim como Cristina e Lia, Rosangela também entendeu a ideia de abandono como algo para além da ação de Mario: “No fundo, foi Olga quem se abandonou”.

Ao final, o professor Marcos fez uma comparação entre a narrativa de Olga e o texto Laços, de Starnone. As duas obras apresentam interessantes confluências e semelhanças – por exemplo, nas duas há uma mulher com dois filhos abandonada pelo marido, chamado Mario nos dois textos, que deixa a mulher para ficar com outra mais jovem, entre outras – mas, como frisou o professor, são apenas coincidências, já que outros tantos pontos não sustentam a hipótese de que os eventos narrados poderiam ser o mesmo, vistos de outras perspectivas.

Mais uma vez, o Clube de Leitura reuniu dedicados e dedicadas amantes da literatura que fazem da partilha das ideias um evento instrutivo e agradável. E o Clube estará de volta em agosto, após o mês de férias. Serão apenas alguns dias, poucos, de abandono...

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