CFCL-SINESP CONVIDA recebe Wilson Alves-Bezerra

O Centro de Formação, Cultura e Lazer do SINESP realizou, no dia 26 de agosto, a primeira edição do CFCL-SINESP CONVIDA. O evento, organizado de forma híbrida, trouxe ao Clube de Leitura Wilson Alves-Bezerra, autor do livro Vapor Barato, para um debate revelador sobre sua obra. 

Leitoras sabatinam autor para desvendar segredos de Vapor Barato

Seria muito legal conversar com a autora ou o autor de uma obra de arte – a pessoa que escreveu um livro, que dirigiu um filme, que compôs uma música, etc. – e poder perguntar a ele ou a ela quais foram suas intenções e suas expectativas com seu trabalho, como foi o processo criativo, como foram as etapas de produção, suas impressões sobre a recepção da obra pelo público e pela crítica. Foi exatamente a realização dessa possibilidade que o CFCL – SINESP proporcionou a seu grupo de filiados e filiadas.

CFCL SINESP CONVIDA UM

Na última sexta-feira, 26 de agosto, os tradicionais clubes culturais do SINESP tiveram a honra de acolher o escritor e professor Wilson Alves-Bezerra para discutir seu primeiro romance, “Vapor barato”, lançado em 2018, pela editora Iluminuras. O livro traz como únicos personagens um psicanalista e um analisando, não nomeados, em uma sessão de terapia, sem qualquer narração, apenas o registro da troca dialógica de ambos. E no centro das aflições, conflitos e incertezas do analisando, a situação do Brasil pós-golpe de 2016 – acontecimento que lançou o país num abismo de corrupção, morte, fome e destruição em que está atolado.

Participação presencial e caricaturista marcam estreia de novo projeto do CFCL-SINESP

O evento foi uma sessão especial do já longevo Clube de Leitura, agora em uma nova modalidade: “Clube de Leitura Convida”. Além dessa novidade, a data foi marcada também pela primeira atividade dos clubes realizada de maneira híbrida desde o início da pandemia de Covid-19. O encontro contou, presencialmente, com os Dirigentes Sindicais Alcina Carvalho Hatzlhoffer, Maura Maria da Silva, Douglas Eduardo Rosa e com os professores mediadores Marcos Maurício e Jean Siqueira. As filiadas Neuza Carvalho, Maria Aparecida Gieczewski e Valéria Faria se inscreveram para participar da plateia. De casa, cerca de trinta filiadas acompanharam e interagiram intensamente com o convidado e com a equipe in loco. Inspirado no consagrado programa Roda-Viva, da TV Cultura, o evento ainda contou com a presença do cartunista Fábio Vicente, que ao longo do encontro fez caricaturas dos presentes.

CFCL SINESP CONVIDA TRÊS

A conversa começou com o professor Marcos – um amigo de longa data do autor – que, após a enumeração da formação acadêmica e das premiações e indicações a prêmios do convidado, lhe perguntou: “quem é Wilson Alves-Bezerra?”. Em sua resposta a uma questão tão difícil de ser respondida, a capacidade poética e imaginativo-descritiva do convidado já se evidenciou: “Eu sou alguém por meio do qual as palavras explodem”. Nessa linha, o autor ressaltou a importância que vê nos processos comunicativos, de como a linguagem, a escuta e a compreensão são fundamentais para nossa humanização. Daí, inclusive, um dos temas centrais do seu texto ser a incomunicabilidade, o fracasso das trocas discursivas humanas, o de como a fala e a escuta podem se dar em situações-limite. E desenvolvendo essa reflexão, quando perguntado pela filiada Maria de Lurdes se acreditava no papel da psicanálise como facilitadora desse processo – afinal, a última frase do texto diz “Se eu acredito na psicanálise, doutor? – Wilson respondeu afirmativamente, justamente por essa prática permitir a mediação e o trânsito do eu para um outro, levando, assim, os indivíduos a uma maior autocompreensão.

CFCL SINESP CONVIDA QUATRO

Emoção e lágrimas: filiada comove ao celebrar presença física no Clube de Leitura

Em um dos momentos mais emocionantes da tarde, a filiada Valéria, presencialmente presente, ficou com a voz embargada e os olhos cheio de lágrimas ao testemunhar sua felicidade por estar ali participando novamente de uma das atividades do SINESP, sem ser pela tela de algum dispositivo eletrônico. Lamentou por todo o horror da pandemia e do isolamento social decorrente dela, por todo descaso do atual governo, que, ao mesmo tempo que negava a gravidade da situação, negociava propinas sobre vacinas enquanto milhares morriam. Ao final de sua fala, o professor Jean se levantou da cadeira que estava no cenário montado para o encontro e um longo e apertado abraço se seguiu. Em suas considerações sobre o livro, Valéria chamou a atenção para o poder da arte, da literatura em particular, de elevar o espírito de quem a experencia, perguntando a Wilson se ele tinha ideia do quanto trabalhos como seu livro faziam bem ao mundo. “A linguagem estabelece laços”, respondeu prontamente o autor, também com os olhos marejados, ao ouvir as palavras de Valéria e ao perceber como suas palavras e de outros autores ajudaram o mundo durante a pandemia. Logo em seguida, desenvolveu alguns pensamentos sobre a função social e política da arte.

CFCL SINESP CONVIDA SETE

A dirigente Alcina considerou o texto “inquietante” e perguntou a Wilson se ele havia pensado em causar incômodo proposital em seus leitores e leitoras com uma narrativa tão ancorada na realidade, tão cruamente descrita. A esse questionamento, obteve como resposta que o autor escreveu um texto visando a expressar sua própria inquietude, seu próprio incômodo com os desdobramentos do golpe de 2016 no Brasil.

O professor Marcos, por sua vez, quis saber se “Vapor Barato” foi pensando desde o início como um texto constituído apenas por diálogos, sem narradores, sem descrições. E, no espírito desse questionamento, a filiada Angela Figueredo também indagou sobre o processo da escrita, de como havia sido o planejamento geral antes da redação. Em outro momento, Marcos quis saber se o livro havia recebido algum tipo de interpretação mais inusitada, se alguma das críticas literárias feitas ao texto trouxe perspectivas não imaginadas ao longo da concepção e execução da obra. À primeira pergunta, o professor Wilson relatou que a ideia sempre havia sido a de “isolar vozes”, de tentar capturar a angústia do analisando e, dessa maneira, conceber o terapeuta mais como um mediador dessa voz principal, um canal permitindo, como praxe nas sessões de terapia, uma escuta de si. E, para esse fim, um planejamento mínimo foi pré-estabelecido: uma sessão de terapia, analisando e analista, em sucessivos encontros. Por outro lado, o conteúdo das trocas discursivas, pontuou Wilson, foi mais espontâneo, surgindo conforme a própria necessidade do autor de expressar seus pontos de vista e seus próprios incômodos com a situação do país. Talvez por esse tema bastante explícito e o conteúdo dos diálogos bastante direto, nenhuma interpretação que o texto gerou se afastou de suas intenções iniciais. Além disso, a realidade cotidiana acabava sendo pano de fundo de muitas das sessões.

Terapia como ferramenta para suportar uma realidade fora de controle

Sendo o pano de fundo da narrativa a ocorrência de diversas sessões de trabalho psicanalítico, o conteúdo dos sonhos do analisando foi um recurso narrativo constante nas páginas de “Vapor Barato”. A esse respeito, o professor Jean perguntou ao convidado se ele havia pensado alguma significação especial para esses sonhos, se existiria ali uma dimensão simbólica imaginada de antemão e que demandaria dos leitores e leitoras alguma compreensão de relações entre esses diversos símbolos. Sobre isso, Wilson revelou que trouxe à tona esses sonhos na medida em que os imaginava, estabelecendo mais situações analógicas com os acontecimentos no país, mas sem racionalizar esquemas simbólicos mais sistemáticos ou específicos por trás deles.

A dirigente Maura Maria confessou que, ao ler a obra, havia imaginado um personagem mais velho, o que contrastava com a aparência do professor Wilson. Ela também destacou a importância de o livro tocar em temas ligados à questão racial, apontando que, por mais de uma vez ao longo da narrativa, o analisando se coloca por mais como um homem preto, como alguém que emergiu de classes econômicas mais carentes para estratos de maior poder aquisitivo no seio da sociedade e que tem consciência de sua condição nessa sociedade. Por fim, ela perguntou ao convidado por qual razão seu personagem parecia manifestar uma incapacidade de reagir, de buscar um desafogo para seu estado mental em algum tipo de práxis política. Wilson concordou que seu personagem realmente aparentava ser alguém incapaz de sair de seu atoleiro pessoal, tal como seu próprio país, o que, em última instância, apontava para um imobilismo de toda a sociedade diante dos mandos e dos desmandos do grupo que assaltou o poder da República.

Ilustração da capa chama a atenção por conexão inteligente com o texto do autor

CFCL SINESP CONVIDA SEIS

A filiada Maria Cinto destacou o belo trabalho gráfico da edição do livro, estabelecendo relações entre a capa escolhida e o conteúdo da obra. Segundo Wilson, as capas de “Vapor Barato” e de alguns de seus livros eram resultado do trabalho de fotomontagem realizado pelo artista Augusto Meneghin. No processo de escolha das capas, Wilson selecionava um trecho de seus textos que julgava mais significativo e apresentava para Augusto, que concebia alguma proposta gráfica que retornava para o aval do autor. Wilson disse que sempre ficou satisfeito com a primeira proposta apresentada pelo artista, um trabalho que, ao seu ver, sempre traduz de maneira adequada em imagens seu trabalho com as composições linguísticas. Como Cinto perguntou a respeito da escolha do título da obra, Wilson logo observou que se tratava de uma alusão à música “Vapor Barato”, gravada por Gal Costa na primeira metade dos anos 70 e regravada posteriormente por muitos outros intérpretes, como Zeca Baleiro e a banda O Rappa. Na letra da canção, a menção ao desejo de partir, de abandonar e esquecer algo que causa dor, ainda que uma pessoa querida – ou, no caso do livro, um país... O professor Jean, inclusive, chamou atenção para o fato de alguns versos da música aparecerem no texto.

As filiadas Rita Maria, Elizabeth Castellão e Angela Figueredo fizeram interessantíssimas relações entre o texto de Wilson e outros produtos culturais, como outras obras literárias e a história da música pop. Rita fez uma bela intervenção ao apontar confluências entre “Vapor Barato” e a obra de João Cabral de Melo Neto, em especial no que diz respeito à inclinação de ambos em um trabalho de “tecer o amanhã” mediante o estabelecimento de laços revolucionários, transformadores da sociedade. Angela lembrou do texto “O Alienista”, de Machado de Assis – texto já trabalhado há alguns anos no Clube de Leitura – ressaltando o tema da compreensão da própria condição mental e da dificuldade de se estabelecer os limites entre a sanidade e a perda dela, em especial de como essa linha demarcatória é o resultado, muitas vezes, de processos de exclusão social. Elizabeth se lembrou da própria vivência como estudante nos tempos da ditadura civil-militar brasileira – período sempre mencionado pelo analisando de “Vapor Barato” – e de como canções de fácil assimilação como as interpretadas pelo movimento da chamada “Jovem Guarda” pouco contribuíam com a crítica social e política que o período tanto exigia. Em outra associação musical, a filiada destacou um trecho do texto em que a menção a um processo educacional falido e de reprodução de posturas alienantes eram uma profunda mazela social e viu na música e no videoclipe da segunda parte de “Another brick in the wall”, sucesso da banda inglesa Pink Floyd, uma expressão dessa ideia.

CFCL SINESP CONVIDA DOIS

A filiada Mara Zago trouxe como questão a problemática do uso de medicamentos como tratamento para o campo da saúde psíquica. Segundo ela, a partir do momento que, no texto, o analisando começa a ser medicado, seu ímpeto de contestação e de revoltado com o status quo começa e esmorecer, tornando-o cada vez mais abatido e conformado com o mundo ao seu redor. Seria essa uma possibilidade de conciliação – tema que é sugerido pela epígrafe da obra – consigo mesmo e com a realidade? Ou sua situação seria “inconciliável”? Wilson assentiu que o uso de medicamentos certamente foi um fator de esmorecimento de seu personagem, mas a partir do qual outros caminhos da reflexão do paciente se abriram. E a ideia era um pouco essa: explorar as trilhas do labirinto mental da sua indagação sobre seu próprio lugar no mundo, da compreensão de si diante do desafio de encontrar sentido em um mundo, de súbito, aparentemente, destituído dele.

Esperança no futuro: o amanhã é logo ali

Para enriquecer ainda mais o encontro, o convidado leu alguns de seus poemas em prosa que constituem o livro “O Pau do Brasil” (Editora Urutau, 2020) e seu lançamento mais recente, “Necromancia Tropical”, lançado como livro em Portugal pela editora Douda Correia, em 2021, e que está disponível em streaming sob o título “Catecismo Moreninho”, com locução do próprio autor.

CFCL SINESP CONVIDA OITO

Foi uma tarde única, não só pela novidade do evento, pelo retorno da presença de pessoas, pelo compartilhamento das experiências e pela absolutamente simpática, carismática e atenciosa presença de Wilson Alves-Bezerra, mas pela reunião de todos esses prazeres numa celebração da arte e da literatura – e, consequentemente, de um manifesto contra o horror que nos cerca. Mas tenhamos esperança: o pesadelo vai acabar.

CFCL SINESP CONVIDA NOVE

CFCL SINESP CONVIDA ONZE

 

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