Na última sexta-feira, o Cine Debate do CFCL Benê do SINESP realizou um encontro para discutir o filme “Rashomon” (1950), icônica obra do cineasta japonês Akira Kurosawa. O evento aconteceu online, e marcou o encerramento do ciclo de filmes clássicos trabalhados ao longo deste ano que incluiu a produção de grandes mestres do cinema como Fritz Lang, Ingmar Bergman, Alfred Hitchcock, Vittorio de Sica, Roberto Rosselini e Agnes Varda, além de Kurosawa.
Considerado uma obra-prima do cinema mundial, “Rashomon” é reconhecido por sua inovadora estrutura narrativa. A trama gira em torno de um crime contado sob diferentes pontos de vista, o que permite ao roteiro/direção trazer à tona o caráter inescapavelmente subjetivo da memória e problematiza a complexidade da ideia de verdade. No filme, cada testemunha de um assassinato relata a história de maneira diferente, levantando questionamentos sobre a interpretação da realidade e o valor e enviesamento das percepções individuais.
Baseado nos contos “Rashomon” (nome de um templo em Kyoto, onde parte da ação do filme se desenrola) e “Num bosque de bambu”, escritos por Ryunosuke Akutagawa no início da década de 20, o filme de Kurosawa não apenas fez uma adaptação narrativa, mas também a ampliou ao tomar elementos de ambos os textos, apresentando as questões e dilemas morais do primeiro em uma das camadas narrativas do filme, relegando às outras duas dimensões temporais da obra (os relatos das testemunhas e os correspondentes flashbacks dos supostos acontecimentos) a maior proximidade com o segundo conto.
O uso da luz e da sombra, as escolhas de ângulo e a movimentação de câmera foram alguns dos elementos apontados como fundamentais para construir a atmosfera de mistério e incerteza que permeia o filme. Um dos destaques foi a maneira como Kurosawa utilizou a luz natural, especialmente a luz filtrada pelas árvores da floresta, para criar uma sensação de fragmentação e ambiguidade visual. Outro aspecto destacado foi o uso da dinâmica entre câmeras objetivas e subjetivas, recurso usado de maneira a criar mais elementos para a interpretação e tentativa de elucidação dos acontecimentos apresentados à audiência.
O contexto histórico do Japão no pós-guerra também emergiu como um aspecto para a compreensão da profundidade de “Rashomon” durante o encontro do Cine Debate. O filme de Kurosawa, conforme foi apontado, refletia ainda um país em vias de reconstruir sua identidade, uma nação tentando fazer sentido do caos e das incertezas geradas pela Segunda Guerra Mundial. Naquela época, o Japão atravessava um momento de intensas transformações políticas, sociais e culturais, e esse cenário certamente influenciou a obra do cineasta.
No debate, a ambiguidade moral que permeia o filme — onde ninguém parece ser completamente inocente ou culpado —, especialmente as interlocuções que se dão nas ruínas do templo de Rashomon (não por acaso, simbolicamente ilhado por uma chuva torrencial) foi associada ao sentimento de ambivalência provavelmente dominante no Japão da época. Sob essa hipótese “Rashomon” poderia ser tomada não como uma obra de valor meramente cinematográfico, mas também como um comentário sobre uma sociedade que, após uma experiência traumática, lutava para redefinir a verdade e reconstruir sua identidade. Nesse sentido, a cena final, com o cessar da tempestade e o encaminhamento de uma criança abandonada para um novo lar poderiam sugerir uma mensagem de esperança.
Dessa forma, parece plausível pensar que “Rashomon” não apenas explora filosoficamente o caráter fragmentado da verdade, mas também funciona como um espelho da própria fragmentação que o Japão enfrentava no pós-guerra, capturando as cicatrizes invisíveis de um país em transição.
“Rashomon” é um marco na história do cinema, pois não apenas narra uma história, mas o faz artisticamente. Ao final da discussão, ficou claro que o brilhantismo de Kurosawa está tanto em sua habilidade de contar histórias quanto em seu domínio da linguagem visual e em sua capacidade de absorver o espírito de um tempo e expressá-lo com profundidade psicológica e simbólica, elementos que, juntos, lançam sua audiência nas férteis paragens da reflexão.