Artigo publicado no Ecoa UOL de 19 de julho de 2022 – Veja o original AQUI.
Apesar de insistência, gestão privada em escola pública não melhora ensino
A ideia parece sedutora: entregar a administração de escolas públicas a entes privados para obter mais eficiência e alto desempenho. Afinal de contas, o mercado e o sistema de competição seriam as melhores formas de conseguir baixar custos e, ao mesmo tempo, oferecer qualidade. Só tem um problema: não funciona. Pelo menos não na educação.
A conclusão é do relatório Escolas Charter e Vouchers, publicado pelo grupo de pesquisa D3e - Dados para um Debate Democrático na Educação. Trata-se de uma metanálise, espécie de resumo científico que considera os resultados de dezenas de estudos prévios sobre um tema. No caso da pesquisa, a questão norteadora foi: "Subsídios públicos para entidades privadas melhoram a qualidade da educação?"
O "não" surgiu das evidências trazidas por cerca de 150 artigos e estudos de caso publicados nas melhores revistas científicas da área de educação, administração pública e economia, analisando experiências sobretudo nos Estados Unidos, país em que a participação da iniciativa privada na educação tem longa trajetória.
A síntese de evidências aponta duas conclusões principais: 1- a iniciativa privada na rede pública tem impacto nulo ou muito baixo sobre o desempenho dos estudantes; 2- a entrada de entes particulares aumenta a desigualdade no sistema, gerando segregação racial e socioeconômica dos alunos mais vulneráveis. Nos Estados Unidos e na Suécia, nascidos no país buscavam áreas mais distantes para estudar em escolas com menos imigrantes ou pobres.
Sem impacto na qualidade, piora nas finanças
Há dois modelos de subsídio público à iniciativa privada na educação. O primeiro são os vouchers, espécies de bolsas de estudo para que os alunos paguem as taxas de instituições privadas de ensino. No Brasil, é o caso do Programa Universidade para Todos (ProUni). A segunda porta são as chamadas escolas charter, instituições privadas financiadas pelo setor público. É o exemplo das creches conveniadas na rede municipal de São Paulo, contratadas pela prefeitura para suprir o déficit de vagas.
"Há duas discussões sobre esse tipo de mecanismo", afirma Lara Simielli, uma das autoras do estudo e professora de Gestão Pública na Fundação Getulio Vargas (FGV). "O primeiro é um debate ideológico: faz sentido transferir a administração de escolas públicas para particulares? É uma questão em aberto, mas quem pensa a educação como um direito universal costuma se posicionar contra. Já a segunda discussão é técnica: a administração particular aumenta a eficiência? Nesse aspecto, a síntese de evidências é muito clara em mostrar que não".
Para Lara, a introdução do mercado em serviços públicos até pode dar certo em outras áreas. "Mas, na educação, não tem funcionado. Os dados são muito robustos." No Brasil, há complicadores adicionais, como a fiscalização. O Brasil conta com 26 redes estaduais mais a do Distrito Federal, além de 5.570 municipais. Como avaliar se a iniciativa privada seria suficientemente regulada para garantir que o financiamento público não seria mal utilizado?
Outra questão é financeira. Escolas conveniadas não podem receber dinheiro do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), principal mecanismo de transferência de recursos da União às redes municipais e estaduais. Isso significa que as prefeituras precisam buscar recursos próprios para financiar escolas geridas pela iniciativa privada. O custo é alto: pelos cálculos de Alexandre Schneider, ex-secretário de educação da cidade de São Paulo, uma escola com 1 mil alunos custaria cerca de R$ 5,9 milhões por ano aos cofres públicos.
"Dizer que a escola pública é mal gerida não encontra amparo nenhum na prática", afirma a formadora de professores Tereza Perez, diretora-presidente da Comunidade Educativa CEDAC. "Claro que precisa melhorar, mas já sabemos a fórmula: investimento em gestão, boa formação, clima escolar favorável à aprendizagem, envolvimento das famílias e da comunidade, gestão democrática. Quando esses ingredientes estão presentes, a escola tem boa qualilidade", enumera.
Um projeto polêmico em São Paulo
Apesar das evidências em contrário, seguem surgindo propostas para a introdução de mecanismos de mercado nas redes públicas. Em São Paulo, um projeto de lei (PL) da vereadora Cris Monteiro (NOVO-SP) busca replicar o sistema de gestão compartilhada, já existente em creches, nas escolas de Ensino Fundamental e Médio da rede municipal. Elas seriam geridas em parceria com organizações da sociedade civil sem fins lucrativos, as chamadas OS.
"A gente já entendeu que o estado não dá conta de tudo, daí a necessidade de parcerias", afirma a vereadora. Questionada sobre o levantamento da D3e, Cris apontou que não podia comentar o custo adicional por escola porque não recebeu a "memória de cálculo" do grupo de pesquisa. À coluna, a assessoria do D3e informou que se trata de uma conta simples: o valor por aluno repassado pelo governo federal à prefeitura de São Paulo (R$ 5,9 mil, no caso das séries finais do Fundamental) multiplicado pelo total de alunos - se forem 1.000 estudantes, o total é R$ 5,9 milhões.
Quanto às conclusões do relatório, Cris argumenta que "sempre tem estudos que apontam essas evidências [negativas] e outros que apontam outras evidências [positivas]". Como o PL não apresenta pesquisas defendendo a administração privada, a coluna pediu à assessoria da vereadora que enviasse os dados que fundamentam o projeto. Recebeu relato de caso em Pernambuco, um prospecto de experiência em Minas Gerais, uma proposta de consultoria para expansão de vagas em creches em São Paulo, duas reportagens de revista (uma delas reconhecendo a desigualdade entre escolas charter) e a indicação de um livro.
Para Lara, os documentos são "frágeis". "Nossa metanálise considerou estudos publicados nas melhores revistas científicas internacionais em pontuação. São os mais citados pelos pares acadêmicos, com metodologia rigorosa e robusta, incluindo grupo controle e tratamento estatístico para possibilitar a comparação de resultados", afirma.
"Não somos contra a competição entre escolas públicas", ressalva a pesquisadora. "Isso significa garantir que haja diversidade de modelos de escola e que os pais possam escolher onde o filho pode estudar. Ambas as coisas podem ser feitas sem vouchers ou escolas charter", finaliza.