“NÓS FAZEMOS A HISTÓRIA: A ESCOLA E OS MOVIMENTOS SOCIAIS”

Edilson da Silva Cruz[1]

Resumo

Este artigo descreve e analisa o projeto “Nós fazemos a História: a escola e os movimentos sociais”, desenvolvido entre os anos de 2019 e 2020 na Escola Municipal de Ensino Fundamental Virgílio de Mello Franco. O projeto consistiu em receber a visita de diversos ativistas de movimentos sociais e populares, para rodas de diálogo com os estudantes, em sala de aula. Levando em conta a experiência do projeto na escola, mobilizaram-se conceitos freireanos, como “dialogicidade”, “problematização” e “conscientização” (FREIRE, 2001; 2011a; 2011b; 2011c), e de outros autores (PARO, 2016; GOHN, 2001; GENTILI, 2002) para discutir o diálogo como conteúdo e forma do projeto, bem como a relação entre escola e sociedade, mediada pelos movimentos sociais. A análise deu-se a partir da descrição do projeto e de depoimentos compilados em documentário a respeito. Concluiu-se que o projeto demonstra a pertinência do diálogo com os movimentos sociais para a renovação das práticas escolares e dos coletivos que atuam em favor de uma sociedade sem exclusões.

Palavras-chave: Movimentos sociais. Dialogicidade. Escola e sociedade.

 

Introdução

Entre os anos de 2019 e 2020, a Escola Municipal de Ensino Fundamental (Emef) Virgílio de Mello Franco realizou o projeto “Nós fazemos a História: a escola e os movimentos sociais”, com turmas do 9º ano do Ciclo Autoral, na disciplina de História. O projeto consistiu em receber a visita de diversos ativistas de movimentos sociais e populares, que militam em diferentes causas (terra, trabalho, habitação, direitos de mulheres, LGBT[2], negros etc.), para rodas de diálogo com os estudantes, em sala de aula. O projeto surgiu de uma demanda dos próprios estudantes por “aulas mais dinâmicas” e por discussões sobre questões sociais relevantes. Como fruto do trabalho, em 2020, elaborou-se um documentário a respeito do projeto, que está disponível no YouTube[3].

Neste artigo, além de uma descrição geral do projeto, abordaremos duas questões centrais que nos chamaram a atenção em sua elaboração: (1) o diálogo entre gestão escolar, educadores, educandos, ativistas e coletivos convidados como forma e conteúdo do projeto e (2) a relação entre escola e sociedade, mediada pelos coletivos que estiveram presentes, como caminho para uma escola democrática e socialmente relevante.

Como mediação teórica, valemo-nos dos conceitos de “dialogicidade”, “problematização” e “conscientização”, conforme entendidos por Paulo Freire (2001, 2011a, 2011b, 2011c). Também dialogamos com Paro (2016), em seu debate sobre democratização da escola, com Gohn (2001) e Gentili (2002), que abordam a relação entre educação e movimentos sociais.

Concluímos que há necessidade de que as escolas municipais sejam espaços abertos ao diálogo com a sociedade, que fomentem os processos de ensino e aprendizagem com consciência crítica e que sejam espaços de gestão democrática e compartilhada, pautada no diálogo e na possibilidade de conscientização e transformação social.

Nós fazemos a escola e a História

No primeiro semestre de 2019, organizamos mais uma reunião do nosso Conselho Participativo da Emef Virgílio de Mello Franco, instância colegiada criada para permitir um diálogo mais efetivo entre educadores (professores, funcionários, direção) e educandos do Ciclo Autoral (7º a 9º ano). Nessa reunião, uma das demandas dos estudantes, ao serem questionados sobre formas de aprender melhor, foi a de terem “aulas mais dinâmicas”, ou seja, que se abordassem assuntos de interesse deles e de modo mais motivador.

A partir disso, a professora de História[4] do Ciclo Autoral procurou a mim, diretor da escola, e manifestou sua angústia de não se sentir capaz de responder à demanda dos alunos, pois se via como uma professora tradicional, com dificuldade de modificar suas práticas. Sugeri então que ela buscasse ouvir mais os estudantes, para entendê-los melhor. Dessa escuta, a docente identificou interesses deles por assuntos contemporâneos, por exemplo, conhecer o “movimento LGBT”.

Ao dialogarmos novamente a respeito, surgiu a ideia de trazermos até a escola ativistas desse e de outros movimentos sociais em atuação na sociedade, considerando a importância do assunto para a formação cidadã dos alunos e o diálogo que poderia existir com os objetivos de aprendizagem e desenvolvimento do Ciclo Autoral na disciplina de História.

Na elaboração do projeto, dialogamos com o Currículo da Cidade, o qual prevê o estudo de movimentos sociais de resistência no 8º e 9º anos, na perspectiva de “uma formação comprometida com a análise, posicionamento e participação [dos educandos] diante da complexidade da realidade vivida” (SÃO PAULO, 2017, p. 64). Ao tomarmos os movimentos sociais como objeto de estudo, percebemos a centralidade do conceito de “sujeito histórico”, de modo a articular o saber próprio da disciplina com seus objetivos na formação dos estudantes: que eles adquiram uma formação integral, aprendam a agir pessoal e coletivamente, percebam-se como sujeitos históricos, identifiquem e compreendam as atuações de protagonismo histórico de diversos grupos e sociedades (SÃO PAULO, 2017).

O segundo passo da elaboração foi estudar um pouco melhor os movimentos sociais. Identificamos o contexto em que surgiram os principais coletivos em atuação no Brasil (relacionados às mudanças sociais e políticas do país nas últimas décadas), os quais forjam ações coletivas de resistência, seja em um recorte de classe, seja a partir de outras demandas socioculturais: democracia, valorização das subjetividades, formação de identidades, diversidade sexual e de gênero, cidadania etc. (RODRIGUES, 2011). Consideramos também a organização coletiva dos movimentos em prol de transformações como um ponto importante que justifica seu estudo, do ponto de vista da formação cidadã dos estudantes, uma vez que esses grupos propiciam a difusão dos ideais de emancipação, alimentam os desejos de liberdade e “anunciam o novo ao denunciar as contradições existentes e desafiar os códigos culturais dominantes” (RODRIGUES, 2011, p. 147). Por fim, os movimentos sociais são espaços de prática educativa popular e não-formal, importantes na consolidação da democracia e capazes de “reeducar quem deles participa”, uma vez que “põem a nu as contradições sociais” (PALUDO, 2005, p. 12).

Depois desse primeiro momento de estudos, estruturamos o projeto em três partes. Na primeira parte, composta de duas aulas introdutórias, mediamos com os educandos momentos para que eles pudessem compreender o que significa ser um sujeito histórico e o que são os movimentos sociais. Na primeira aula, em círculo, os estudantes foram levados a identificar, no material que ambientava o espaço, fotos e pequenas biografias de ativistas de ontem e de hoje, que contribuíram com mudanças a partir de suas lutas. Já na aula seguinte, eles tiveram contato com notícias recentes de atuação de movimentos sociais no Brasil e puderam entender algumas características de alguns deles: quem são seus sujeitos – a favor ou contra aquilo pelo qual eles lutam – e qual utopia de sociedade os inspira. Com essas duas aulas, preparamos os estudantes para as rodas de conversa da etapa seguinte.

Na segunda parte, iniciamos os “círculos de cultura”, ou seja, encontros em forma de roda de conversa nos quais recebíamos um ativista por semana, de algum coletivo, grupo ou movimento local ou nacional, para conversar e trocar experiências com os estudantes. Recebemos militantes do Movimento Sem Terra (MST), do Levante Popular da Juventude, da Pastoral da Juventude, da Rede Ecumênica da Juventude (Reju), de coletivos religiosos que defendem os direitos humanos (Igreja Povo de Deus em Movimento, Koinonia, Católicas pelo Direito de Decidir), do Coletivo Leste Negra, do povo Pankararu, do movimento LGBT e de ativistas locais do bairro. Durante os encontros, percebemos um engajamento cada vez maior dos estudantes nas discussões e uma grande motivação em participar das aulas. O conhecimento foi construído, ao longo do projeto, de modo circular e dialógico, fomentando uma verdadeira problematização, elemento essencial para a construção de uma verdadeira educação, na concepção freireana. Identificamos, na “troca de experiências” pautada por perguntas, questionamentos, partilhas e debates abertos sobre diversos temas, a característica que tornou os encontros do projeto uma experiência gnosiológica problematizadora, que garantiu a apropriação dos objetos cognoscentes por parte dos estudantes e sua própria ressignificação enquanto sujeitos (FREIRE, 2011a).

Por fim, a última parte foi o processo de gravação de depoimentos dos envolvidos para a confecção de um documentário a respeito. No começo de 2020, os alunos do 9º ano foram convidados a irem novamente à escola registrar seu depoimento em vídeo, relatando o que aprenderam no encontro, qual importância atribuíram à experiência e o que mais desejassem expressar. Além disso, os educadores da escola e os ativistas convidados também gravaram depoimentos contando sobre sua experiência nas rodas de conversa. Durante os meses de janeiro e fevereiro, essas gravações foram feitas, bem como a edição do material, com a ajuda da produtora e educadora Caroline Fagundes. Em março de 2020, o documentário foi finalmente concluído e colocado no ar no YouTube. Nossa intenção era promover sessões para assisti-lo presencialmente na escola, o que nos foi impossibilitado pela pandemia de Covid-19. Estamos aguardando o fim da pandemia para realizar uma segunda edição do projeto.

O diálogo como forma e conteúdo: uma análise freireana

O que o relato feito tem a nos ensinar a respeito de uma escola mais democrática e uma educação emancipadora? Essa questão nos interessa, dado que assumimos o ponto de vista de que a gestão escolar é uma atividade-meio orientada à atividade-fim da escola, que é o processo de ensino e aprendizagem, no qual educadores criam oportunidades para que os educandos se apropriem do saber acumulado pela humanidade e possam inserir-se no mundo, participar na construção da cultura, em suas variadas formas, e alcançar sua autonomia e sua emancipação. Cabe, portanto, também ao diretor e aos demais membros da equipe gestora atuarem para favorecer práticas pedagógicas emancipatórias na escola.

No relato do projeto, parece-nos relevante que tudo tenha tido um início a partir de um processo de escuta e de participação via Conselho Participativo, instância que busca tornar os educandos também protagonistas do processo de avaliação das aprendizagens escolares. Nesse espaço, professores colocam-se na postura de escuta e os estudantes expõem suas demandas, autoavaliam-se e também escutam as avaliações dos docentes. O pedido por “aulas mais dinâmicas” sempre está presente.

Do ponto de vista da gestão educacional, a criação de um espaço de escuta dos estudantes configura-se uma tentativa de promover sua autonomia como sujeitos e sua participação nas atividades-meio da escola. Paro (2016, p. 185), ao refletir sobre a necessidade de ampliar o espaço da autonomia dos educandos na escola, afirma que:

[...] à necessária condição de sujeito dos educandos prevalecente nas atividades-fim deve corresponder um poder de decisão discente no funcionamento geral da instituição educativa. Na verdade, não faz sentido uma descontinuidade entre esses dois momentos, e em todas as experiências bem-sucedidas de educação democrática sempre teve destaque a participação dos estudantes na organização e funcionamento da instituição educativa.

Na perspectiva do autor, a construção da autonomia dos educandos é uma tarefa a ser assumida por todos os educadores, sejam eles os professores em sala de aula ou os gestores e demais funcionários da escola. Ora, o Conselho Participativo que deu origem ao projeto “Nós fazemos a História”, ao permitir a escuta dos educandos por parte dos educadores, configurou-se como espaço efetivo de democratização das relações da escola, especialmente por sua articulação com a atividade-fim escolar, ou seja, com o processo de ensino e aprendizagem que ocorre em sala de aula. De nada adiantaria esse momento se não houvesse, entre os docentes, quem se dispusesse a levar a sério a fala dos alunos. No documentário que produzimos, a relação entre esse processo de escuta e a elaboração do projeto está presente nas seguintes falas:

Nossa escola tem um Conselho Participativo onde os alunos, eles colocam as angústias deles, os problemas relacionados também ao aprendizado deles. Nós vimos que os nonos anos estavam enfrentando muita dificuldade de entender a escola [...] A partir da escuta dos alunos, e da experiência que eu já tinha de realização de projetos na escola, e a experiência do diretor com movimentos sociais, nós organizamos o nosso projeto (Professora de História).

Os alunos demandaram no Conselho Participativo que a gente faz, que queriam algumas metodologias mais dinâmicas em sala de aula e tudo mais, especialmente no nono ano. A professora de História, então, me procurou, trouxe essa demanda dos alunos. Também [disse] que os alunos tinham interesse de conhecer, por exemplo, o movimento LGBT (Diretor de escola).

Eu conversei com a professora a respeito das aulas de História porque, tanto eu como os alunos da minha sala, nós estávamos um pouco incomodados com a situação que estava acontecendo nas aulas de História. Eu conversei com ela a respeito e ela super acatou o que eu falei (Educanda do 9º ano).

Assim, identificamos o processo que levou à gestação de uma prática pedagógica pautada no diálogo, no protagonismo dos educandos, no papel mediador dos educadores e no caráter problematizador de uma experiência pedagógica efetivamente democrática. Nesse sentido, percebemos que as relações de poder do ensino tradicional, que podemos associar à já clássica metáfora freireana da “educação bancária”, são subvertidas em prol de uma prática problematizadora. Na educação bancária ou no ensino tradicional, o educador é o sujeito e os educandos são os objetos destinatários da ação do educador. Em uma perspectiva problematizadora ou democrática, porém, considera-se a condição de sujeito de ambos, educador e educando. Para Freire (2011a, p. 95-96, itálicos do autor):

Não seria possível à educação problematizadora, que rompe com os esquemas verticais característicos da educação bancária, realizar-se como prática da liberdade, sem superar a contradição entre o educador e os educandos. Como também não seria possível fazê-lo fora do diálogo. [...] Desta maneira, o educador já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo, com o educando que, ao ser educado, também educa. Ambos, assim, se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos e em que os “argumentos da autoridade” já não valem. Em que, para ser-se, funcionalmente, autoridade, se necessita de estar sendo com as liberdades e não contra elas.

O diálogo, transformado em metodologia de trabalho escolar, tanto nas atividades-fim como nas atividades-meio, converte-se em “ato de criação”, mobiliza experiências dos sujeitos e faz emergir a verdadeira educação, ou seja, “a que, operando a superação da contradição educador-educandos, se instaura como situação gnosiológica, em que os sujeitos incidem seu ato cognoscente sobre o objeto cognoscível que os mediatiza” (FREIRE, 2011a, p. 110).

O diálogo também esteve presente na elaboração do conteúdo do projeto. A partir do interesse de um grupo de estudantes, passamos para a consideração da proposta curricular oficial, entendida não como um documento engessador das práticas escolares, mas como “expressão e concretização do plano cultural que a instituição escolar torna realidade dentro de determinadas condições” (SACRISTÁN, 2013, p. 10). A existência de uma proposta curricular não pode significar engessamento do trabalho docente. Antes, cabe a nós, educadores e educadoras, fazermo-nos sujeitos desse currículo e promovermos seu entrecruzamento com a realidade dos educandos e da escola. É justamente essa experiência que se faz presente no projeto relatado.

Concluímos, portanto, que o ambiente dialógico em gestação na escola contribuiu para a elaboração de um projeto marcado pela dialogicidade, em sua forma e em seu conteúdo. Essa dialogicidade, entendida como o diálogo que “se impõe como caminho pelo qual os homens ganham significação enquanto homens” (FREIRE, 2011a, p. 109), ganha ainda mais relevância quando voltamos nosso olhar para os convidados especiais do projeto: os movimentos sociais chamados a dar sua contribuição à escola para a formação dos educandos. É do que trataremos a seguir.

A relação entre escola e movimentos sociais

A ideia de trazermos pessoas de vários movimentos sociais até a escola surgiu de experiências anteriores de presença e diálogo com grupos sociais. A professora de História, em 2017, mediou outro projeto, sobre religiões, que consistia em trazer à escola lideranças religiosas de diferentes tradições espirituais. Ao percebermos o interesse de um grupo de alunos por conhecer o movimento LGBT, optamos por repetir aquelas visitas, desta vez com militantes, pessoas que se engajam em grupos, coletivos e movimentos voltados à busca por justiça e à utopia de uma sociedade sem opressões. Essa presença dinamiza o espaço escolar, ao fazer reverberar dentro dele diferentes pontos de vista, capazes de potencializar a dimensão crítica do ato educativo. Nesse sentido, avaliamos a presença dos movimentos sociais na escola como proposta de uma educação para a cidadania e como potencial renovador para a cultura escolar e suas práticas.

Segundo Gohn (2001), a relação entre educação e movimentos sociais se dá mediada, principalmente, pela ideia de cidadania, entendida de diferentes perspectivas: mais liberais (ligadas à garantia da propriedade privada), políticas (como a noção de “liberdades individuais”) ou ligadas às lutas de grupos organizados em torno da reivindicação de direitos.

Essa última concepção, de “cidadania coletiva”, leva-nos diretamente ao sujeito coletivo que atua via movimentos sociais, conforme aponta Gohn (2001, p. 16):

O cidadão coletivo presente nos movimentos sociais reivindica baseado em interesses de coletividade de diversas naturezas. Assim, temos grupos de mulheres que lutam por creches, grupos de favelados que lutam pela posse da terra, grupos de moradores pobres que lutam pelo acesso a algum tipo de moradia etc. Junto com as demandas populares [...] encontramos demandas advindas de grupos não tão explorados no plano de produção [...], mas igualmente expropriados no plano de seus direitos civis de liberdade, igualdade, justiça, legislação. Temos, assim, os grupos que lutam pelo exercício da cidadania, dos negros, homossexuais, mulheres, pela paz, em defesa da ecologia etc.

Esse sujeito coletivo, na verdade, é expressão da organização coletiva de diversos cidadãos que reivindicam direitos sociais, políticos, econômicos ou culturais que não lhes são garantidos em sua integralidade. Cada um dos ativistas que compõe esses grupos e esses movimentos carrega consigo a história de lutas coletivas que representa e forja, na prática concreta das reivindicações que encampa, processos de conscientização, na acepção freireana, ou seja, “reflexão verdadeiramente transformadora da realidade, fonte de conhecimento reflexivo e criação” (FREIRE, 2011a, p. 127), uma vez que, além de permitir o reconhecimento do mundo, “prepara os homens, no plano da ação, para a luta contra os obstáculos à sua humanização” (Ibid., p. 158.).

Ora, essa característica das lutas sociais coletivas dos movimentos sociais justifica sua presença na escola como auxílio a uma educação para a cidadania, entendida para além de uma concepção puramente liberal. Não se trata de ir até a escola para cooptar jovens para este ou aquele grupo, mas para partilhar experiências de quem se faz sujeito histórico na prática, visando a motivar também os estudantes para se fazerem sujeitos de sua própria existência, pessoal e coletivamente.

Um currículo pautado nos conceitos de “educação integral”, “equidade” e “educação inclusiva”, como é o Currículo da Cidade (SÃO PAULO, 2017), não pode se fechar ao diálogo com a sociedade, através de seus movimentos sociais. Antes, deve servir como um primeiro passo desse diálogo, em especial se entendido como meio, e não fim, da educação escolar.

De fato, ao sintetizar conteúdos disciplinares que devem ser apreendidos pelos estudantes durante sua escolarização, a proposta curricular não encerra a prática educativa. Exige, para a concretização de um processo educativo emancipador, seu confronto com a realidade em torno da qual a escola e seus agentes fazem sua história. Nesse sentido, os agentes ligados aos movimentos sociais, ao fazerem-se educadores no interior da escola, a convite de seus educadores efetivos, contribuem para dinamizar o currículo na prática, fazendo dele uma experiência de apreensão e de desvelamento da realidade, em suas relações de poder e de possibilidades de transformação e mudança.

Além disso, a presença de movimentos sociais no interior da escola integra-a à esfera pública, combatendo a despolitização de ambas, ou seja, o processo no qual a instituição educativa e a esfera pública se separam, aquela autonomizando-se de tal forma que perde os vínculos com esta, “criando a ficção de uma suposta inocência das práticas pedagógicas com respeito às práticas sociais” (GENTILI, 2002, p. 122).

O potencial educativo dos movimentos sociais, muito valorizado por Paulo Freire, que os considerava “uma grande escola da vida” (MEDEIROS et al., 2017, p. 275), renova pedagogicamente a escola, possibilitando a efetividade do ato pedagógico como uma “pedagogia construída nas esferas do ‘mundo vivido’” (FISCHER, 2003, p. 163). É por isso que afirmamos que o diálogo entre escola e movimentos sociais tem um potencial renovador para a cultura escolar e suas práticas.

Da mesma forma, para os movimentos sociais, o diálogo com a escola pode ser um caminho que os leve sempre a dialogar com a sociedade e a renovar também suas práticas. Se assumirmos uma perspectiva dialógica e problematizadora de educação, temos de reconhecer que o ato educativo é uma via de mão dupla da qual ninguém sai o mesmo. Se a escola pode aprender com os movimentos, os movimentos também podem aprender com a escola. Dois depoimentos de ativistas presentes no projeto caminham nesse sentido:

Não só foi um momento em que a gente foi lá e passou conteúdo e não recebeu nada em troca [...] Esse momento de troca com os alunos, justamente por essas reações que a gente ia sentindo no bate-papo, foi o que mais me chamou a atenção que, de certa forma, fez com que a gente saísse de lá com o coração quentinho, com aquela sensação de esperança (Ativista de movimentos ecumênicos).

O movimento feminista esteve na escola, conversou com as alunas e os alunos e nós saímos muito com o coração bastante anestesiado de felicidade, por saber que nossas lutas têm lado, e tem pessoas que falam delas concretamente, através dos afetos e das dores (Ativista de movimento feminista).

Curioso notar a presença das palavras “felicidade” e “esperança” na descrição feita pelos ativistas do efeito da participação no projeto escolar sobre eles. De fato, felicidade/alegria e esperança são dois valores caros a Paulo Freire em relação à prática educativa:

Há uma relação entre a alegria necessária à atividade educativa e a esperança. A esperança de que professor e alunos juntos podemos aprender, ensinar, inquietar-nos, produzir e juntos igualmente resistir aos obstáculos à nossa alegria (FREIRE, 2011b, p. 70).

A atividade docente de que a discente não se separa é uma experiência alegre por natureza. É falso também tomar como inconciliáveis seriedade docente e alegria, como se a alegria fosse inimiga da rigorosidade. Pelo contrário, quanto mais metodicamente rigoroso me torno na minha busca e na minha docência, tanto mais alegre me sinto e esperançoso também. A alegria não chega apenas no encontro do achado, mas faz parte do processo da busca. E ensinar e aprender não podem dar-se fora da procura, fora da boniteza e da alegria (FREIRE, 2011b, p. 139).

A esperança é necessidade ontológica; a desesperança, esperança que, perdendo o endereço, se torna distorção da necessidade ontológica [...] Minha esperança é necessária, mas não é suficiente. Ela, só, não ganha a luta, mas sem ela a luta fraqueja e titubeia. Precisamos de esperança crítica, como o peixe necessita da água despoluída (FREIRE, 2011c, p. 14-15).

De fato, esperança e alegria são valores porque, para além da retórica atual que desgasta essas palavras como simples discurso de autoajuda, sua presença na prática educativa nos recorda de que somos seres humanos, inacabados, em processo de constante construção. Recorda também que não existe realidade social definitiva, imutável, acabada; antes, a esperança crítica permite-nos antever, na imobilidade, na inércia e na desesperança do presente, as possibilidades de ação coletiva que nos levem a superar o momento atual e a construir outros projetos de sociedade. Para os movimentos sociais, portanto, sua presença na escola também vale a experiência e a luta.

 

Considerações finais

 

Para encerrar esta reflexão, vale pontuar o caráter político da prática educativa, da escola e dos movimentos sociais. Como afirma Gentili (2002, p. 123), “os movimentos sociais estão contaminados de política. A escola também. O problema reside em discriminar e reconhecer o conteúdo da política que os contamina. Não existe pureza nos movimentos populares. Não existe pureza na escola”.

Em um contexto social e político que insiste em negar o caráter político da escola, associando-o sempre à dimensão partidária e buscando expurgar da escola o pensamento crítico, afirmar a politicidade da educação é um gesto contra-hegemônico que deve ser não apenas retórico, mas efetivo na dimensão da práxis. E uma das maneiras de fazê-lo é trazer para dentro da escola a conflitividade política que marca a sociedade, como forma não somente de falar sobre essa conflitividade, mas de permitir que reconheçamos que a escola é também permeada por ela. É esse reconhecimento que nos permitirá, como educadores que se identificam com um legado progressista na educação, assumir uma postura em favor de um projeto de ética, equidade, inclusão e democracia.

Encerramos recordando um sonho de Paulo Freire em relação à escola pública, que ele pôde começar a concretizar quando foi Secretário de Educação na cidade de São Paulo. Sendo sua obra um verdadeiro arcabouço teórico da utopia, compreendida como aquilo que nos faz caminhar, enunciá-la novamente, ou redizê-la, é uma forma de revivê-la e, dialogicamente, inspirarmo-nos novamente a com ela dialogar e fazê-la concreta no hoje da nossa história:

A escola pública que desejo é a escola onde tem lugar de destaque a apreensão crítica do conhecimento significativo através da relação dialógica. É a escola que estimula o aluno a perguntar, a criticar, a criar; onde se propõe a construção do conhecimento coletivo, articulando o saber popular e o saber crítico, científico, mediados pelas experiências do mundo (FREIRE, 2001, p. 83).

Ao celebrarmos, em 2021, o centenário de nascimento de Paulo Freire, reafirmamos nosso compromisso com uma escola pública comprometida com a transformação social, mediante seu caráter de instituição socializadora do saber historicamente acumulado e potencializadora da consciência crítica de seus educadores e educandos. Que jamais percamos de vista a necessidade de lutar por essa escola e de construí-la cotidianamente, junto com aquelas e aqueles que, de outras esferas na sociedade, também acreditam e constroem uma sociedade sem opressões.

Referências

FISCHER, N. B. Movimentos sociais e educação: uma reflexividade instituinte. In: HYPOLITO, A. M.; GANDIN, L. A. (Orgs.). Educação em tempos de incertezas. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2003, p. 163-185.

FREIRE, P. A educação na cidade. São Paulo: Cortez, 2001.

______. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2011a.

______. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 2011b.

______. Pedagogia da esperança. São Paulo: Paz e Terra, 2011c.

GENTILI, P. A falsificação do consenso: simulacro e imposição na reforma educacional do neoliberalismo. 3. ed. São Paulo: Vozes, 2002.

GOHN, M. G. Movimentos sociais e educação. São Paulo: Cortez, 2001.

MEDEIROS, L. B. et al. Movimentos sociais/Movimento popular (verbete). In: STRECK, D. R.; REDIM, E.; ZITKOSKI, J. J. (Orgs.). Dicionário Paulo Freire. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017, p. 274-276.

PALUDO, C. Educação popular e movimentos sociais na atualidade: algumas considerações. In: RIBEIRO, J. A. R.; RIBEIRO, M. (Orgs.). I Seminário do TRAMSE: trabalho, movimentos sociais e educação – Redes de pesquisa. Porto Alegre: Itapuy, 2011, p. 22-35.

PARO, V. Crítica da estrutura da escola. São Paulo: Cortez, 2016.

RODRIGUES, C. M. L. Movimentos sociais (no Brasil): conceitos e práticas. Sinais – Revista Eletrônica – Ciências Sociais, Vitória: CCHN, UFES, n. 9, p. 144-166, jun. 2011.

SACRISTÁN, J. G. (Org.). Saberes e incertezas sobre o currículo. Porto Alegre: Penso, 2013.

SÃO PAULO (Município). Secretaria Municipal de Educação. Coordenadoria Pedagógica. Currículo da cidade: Ensino Fundamental; componente curricular: História. São Paulo: SME/Coped, 2017.

 

[1] Diretor de escola na Escola Municipal de Ensino Fundamental Virgílio de Mello Franco (Diretoria Regional de Educação São Miguel). Doutorando em Educação pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Mestre em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (Feusp).

[2] Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transgêneros.

[3] O documentário está disponível no link:

 <https://www.youtube.com/watch?v=RISHSQIUMjk&list=PLg8xO4O6HCiuHpuy2f29rgeB_cIcAOpum>. Acesso em: 20 jun. 2021.

[4] Registro aqui meu reconhecimento à professora Ana Silvia Galvão Amorim Silva, responsável direta pelo projeto aqui descrito e pelo seu êxito.


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